Dando sequência às presevações de memórias, esta é de uma carta de Manoel Gomes Ferreira, meu avô, enviada à meu pai, Expedito de Jesus Pazeto, para que este lesse aos amigos citados, Tião Abdala, Val Custódio e o Alfredinho Procópio. Manoel, filho de Abel Ferreira, neto do Ferreirão que veio lá de Portugal de Trás os Montes, era homem muito inteligente, perspicaz, mas de poucas letras. Havia frequentado apenas até o terceiro ano do ensino primário, o que era bem normal para sua época, nas famílias de origem agrícola ou operária (....).
Manoel escrevia versos, histórias, uma necessidade de se comunicar, apesar das poucas letras. Este que segue mistura um pouco da linguagem rimada, um pouco sem rimas, misturada com a linguagem textual e conta uma hilária busca de gado na cidade de Corumbataí. Não se sabe dizer se os acontecimentos tenham sido reais ou fruto da imaginação dele. O texto original foi digitalizado e encontra-se aqui, aos que se interessarem em vê-los.
Ele faz questão de mencionar, no início da carta os personagens: Tião Abdala, Val Custódio e Alfredinho Procópio, e um cachorrinho Tomba Lata. Acredita-se que todos eles eram da cidade de Ipeúna/SP
"Eles partiram de Ipeúna para ir buscar uma boiada em uma cidade muito longe. Despediram-se da famílias e partiram. Depois de andarem muitos dias chegaram à longínqua cidade de Corumbataí. (
Detalhe: a cidade de Corumbataí fica a apenas 38,4 km de Ipeúna, ou 36 minutos de carro, hoje muito perto, mas em lombo de burro já é outra história...)
Foi mais ou menos assim:
Eu ainda tenho saudade
do tempo que eu era moço
montado na minha besta ruana
e com lenço branco no pescoço
O Val que ainda era mocinho
montado no baio Encerado
com um bom ponche na garupa
e um laço dependurado
A boaida era grande 999 bois
Porque você não diz que é mil?
Porque mentiroso não sou
O Alfredinho ia num pampa cego
Ele era o tocador do berrante
O cargueiro ia no lombo de burro velho
que se chamava diamante
E lá ia o Tomba Lata
cachorrinho muito ligeiro
ele afundava no mato
E punha prá fora qualquer pantaneiro
E depois de ajuntar toda boiada lá em Analândia e Corumbataí, eles partiram de volta.
O Alfredinho na frente, repicando o berrante
O Tião e o Val atrás gritando: - Boi, vorta boi do diabo!
- Tião cerca esse boi do chifre quebrado
- Ele vai entrar no mato
- Pode deixar que o Tomba Lata vai buscar aonde ele estivé
E o Tomba Lata passeava de ponta a ponta a boiada
E o que ficava prá trás ele mordia o pé.
Depois de muitos dias de viagem eles chegaram em Graúna. Soltaram o gado no pasto, os animais em um potreiro, para ficar mais fácil. Depois foram até um freje mosca tomar uma chibóca para descer a poeira. Jantaram e foram descansar. O Val disse: - Eu vou dar uma vortinha por aí!
Ele, com um chapéu grande na cabeça, calçado com uma botinha sanfonada e lenço no pescoço. Logo ele encontrou uma morena linda de morrer, a moça mais bonita que ele viu em toda a viagem. Ela era linda, cabelos pretos bem escorridos,. banguela com uma presa de ouro de um lado, quando sorria clareava mais que um farolete. Ele fez até uns versos pra ela:
Oh que beleza de morena, tão serena
És delicada e perfumada igual a flor
A boquinha tão pequena e bem pequena
Toda cheia de beijinho para o amor
O Alfredinho levantou bem cedo para buscar a tropa e o Tião estava levantando e foi logo dizendo:
- Arreie a a Ruana prá mim, enquanto eu tomo café!
O Rapaz que é muito esperto foi, mas quando ele jogou o bacheiro molhado naquele lombo cheio de pizadura a mula mandou os dois pés. E o Alfredinho para escapar pulou para trás, se enroscou e caiu dentro de uma bacia dágua. Furioso chingou:
- Mula miserável, carne de urubú.
Os outros caíram na gargalha e disseram:
- Você nem parece boiadeiro, ponha um cachimbo nessa mula, com uma mão você segura com a outra você arreia.
Ele pegou um cambito de arrochar a bruaca, torceu o beição e arreou.
O Alfredinho já estava cansado de tocar o berrante feito de um chifre de um boi carreiro e já estava ficando papudo de tanto assoprar aquela droga.
Viajaram muitos dias e chegaram em Itapé. Soltaram o gado no pasto e foram dormir.
Eles estavam muito cansados
Cada um deitou em seu bacheiro
Olhando para o céu estrelado
Para ver onde estava o cruzeiro
Para a última marcha saíram bem cedo, a boiada estava cansada e o Tomba Lata sempre ajudando. O Tião disse: - Ai meus Deus do céu eu estou pensando é no Rio Passa Cinco naquela corredeira.
Com muito custo chegaram. O Tião gritou:- Rozeteie o pampa e jogue na água.
Jogaram o gado na água
A corredeira era muito forte
Tião gritou: - Me ajuda Nossa Senhora dos Navegantes
E Val: - Me ajuda meu Santo Onofre
Em Ipeúna todo mundo estava esperando
O Afredinho na frente avisando:
-Fechem as portas os pantaneiros estão chegando.
E na fazenda Barrocão entregaram a boiada.
Eu sortei a Ruana no pasto
Prá lá também foi o baio Encerado
O Pampa que era velho e cego
Venderam para o açougue do Supermercado.
O Tomba ficou sem companheiro
Por esse motivo entristeceu
Ninguém mais lhe deu comida
de fome o Tomba lata morreu
O Val é vendedor de frango
O Tião ficou caminhoneiro
O Alfredinho que era pobre, não tinha nada
Ninguém sabe de seu paradeiro
Agora só resta um
cutiano dependurado
e um laço de couro de mateiro
um par de esporas enferrujados
e uma velha guaiaca sem dinheiro
E assim foi a história dos três boiadeiros
Não sei se nela existe verdade
Mas, mesmo que tudo seja mentira
Dela sentirão saudade
Enviada em 15-05-1984
Manoel Gomes Ferreira, em seu ofício de Carroceiro.
A mulher em frente ao cavalo é Lenira Ferreira Camilo, sua filha, casada com Walter Camilo, logo atrás à carroça, em pé, de camisa branca. À sua direita Ercília Ferreira Pazeto, irmã de Lenira.